18 julho, 2011

Óia o drible!


Estou em plena Chapada Diamantina, lugar que adotei como mais lindo do mundo, estarrecida. Vim para cá a primeira vez em 1995. Desde então passei a frequentar regularmente a região, mas fazia 7 anos que não pisava nestas terras.
A Rua das Pedras de Lençóis, que já foi a rua comercial da cidade, agora é fechada para carros e desfila mesinhas nas suas calçadas e pisos de pedra. É tudo colorido feito a Vila Madalena – as toalhas das mesas, as plaquinhas do comércio, as roupas dos donos. Uma festa que enche os olhos e que me alegraria, facinha que sou para essa beleza boba de tecido de chita. Mas me entristece olhar para essa rua hoje. A Rua das Pedras nunca foi colorida. Na minha lembrança, ela era cinza e amarelo.

Um cinza duro de pedra, um amarelo gastado de tempo. Não tinha ninguém sorrindo naquela rua. Seu Fulano, que perdeu o braço, tinha aquele olhar triste e terrivelmente doce, com seus cavalos e sua casinha vendendo garrafinhas de areia. Seu Sicrano sentava com olhar distante atrás do balcão de seu boteco, escuro, apertado e amontoado de garrafas empoeiradas em suas estantes. Mas a Rua das Pedras tinha crianças, montes delas. E elas jogavam bola, num futebol cômico, considerando a ladeira que configura a rua. Começavam lá em cima, e viam correndo, descendo e inventando o que podiam de futebol para respeitar aquele descidão. Era uma algazarra. Durante anos, se eu tinha vontade de chorar baixinho um choro contente de vida, eu repetia pra mim mesma aquela frase maravilhosa que escutei das crianças numa tarde passada nas Ruas das Pedras: óia o driiiiiiiibre!

Mas a Rua das Pedras de hoje tem menos crianças, e definitivamente não é mais possível jogar futebol. Elas eram inventivas, mas não dá pra jogar nada com tantas mesas e tantas pessoas e tantos cafés e tantas máquinas fotográficas. Aliás, na Rua das Pedras nem café tinha, a não ser o da Dona Joaninha – que continua lá, solitária. Hoje a Rua das Pedras é cheia de cafés. Paramos em um, onde uma dona carioca sensualmente atenciosa nos ofereceu diversos tipos de café, depois diversos tipos de açúcares, depois diversos tipos de sei lá o que. Tivemos que segurar a risada quando ela nos avisou que o café estava demorando, mas que estava em “fase final de preparação”. E explodimos de rir quando ela fez uma piscadela e um jogo de boca para avisar, à distância, que o suco de abacaxi com hortelã também estava em sua fase final de preparação. Não, na Rua das Pedras da minha memória, só tinha suco de maracujá do mato, adoçado ululantemente com açúcar união, num doce que fazia a gente quase desmaiar, mas gelado na medida que segurava a gente em pé.
O guia que me levou pela primeira vez em tantos lugares lindos por aqui, agora tem 30 anos. Ele tinha 15. A vida dele mudou – e ele também. É inteligente, de uma dignidade que me diminuiu, eu do alto da minha vida paulistana. Mas ele é amargo, talvez por ter convivido nos ultimos 15 anos em uma vida estranha – convivendo com turistas, que ele chama de “amigos” – e que consideram ele um “amigo” – mas sem nem de longe ter amizade alguma com eles, a não ser a cervejinha após a trilha. O que será que passa na cabeça de um jovem que convive com tanta gente jovem, mas com tantas mais oportunidades que ele? O que o faz levantar da cama todos os dias para encontrar seus “amigos” sabendo que estes amigos vão embora e que ele ficará lá? Não sei, mas os olhos e as conversas e o copo de cerveja as 10 da manhã deste meu “amigo” de trinta anos me fez pensar no quanto eu fiz mal a ele.
O jovem casal dono da pousada mais charmosa não é mais tão jovem – nem tão charmoso. Parecem cansados da vida. A pousada parece menos cuidada, com a sensação de um entreposto de pessoas apenas. Contam histórias e mais histórias de violência e descaso público na cidade. Sempre contaram, é bem verdade. Mas algo mudou. A pousada agora é cercada, os quartos precisam ser trancados quando vamos tomar café da manhã. E eles parecem no piloto automático.
Os micos que vinham comer banana perto dos hospedes continuam vindo. Mas eles, que sempre comeram banana crua e nada mais, acabam de se servir de uma banana cozida que ofereci. Assim como o guia, os donos da pousada, e a rua das pedras, eles também estão driblando o tempo e as mudanças nessa cidade que um dia já foi deles.
Quanto a mim, trabalhei nos últimos quatro anos da minha vida com os impactos sociais e ambientais de grandes obras em pequenos municípios amazônicos. Aprendi muito e me coloquei muitas vezes do lado de quem recebe um visitante indesejado e tem que se adaptar, às duras custas, a essa realidade.
E agora, terminando minhas férias aqui, no lugar que eu sempre considerei o meu lugar mais lindo no mundo, me dei conta, estarrecida, que sou eu também uma pequena grande obra - e isso não é um auto-elogio.

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