10 outubro, 2008

O País na moda

“O Brasil é o país do futuro!”, diz, entusiasmada, uma amiga americana que mora na Suíça, namora uma italiana, faz doutorado em mudanças climáticas, cultiva uma horta e iniciou um projeto pessoal de não consumir nada novo durante um ano inteiro.  Ela pensa em mudar de país, mas ainda está indecisa entre São Paulo, Nova Délhi ou Pequim.

Vejo o mesmo entusiasmo nos europeus, que me consideram interessante e sortuda, apenas pelo meu passaporte.  Para além da paixão pelas Havaianas e pelas cores verde e amarela, nosso país não é mais associado apenas ao trio violência-futebolcarnaval.

A violência continua presente no imaginário dos gringos – e na dura realidade dos brasileiros -, mas o Brasil é cada vez mais visto como integrante da tal da aldeia global, um país onde as pessoas sonham em morar, onde as coisas acontecem, um país exciting.  Nas palavras da minha amiga globalizada, um país “na moda”.

GINCANA DA POBREZA De cara desconfio, pois já vi entusiasmos semelhantes.  Quando comecei meu mestrado aqui na Inglaterra, imaginei que os cursos mais concorridos do departamento de Desenvolvimento da London Schoolof Economics fossem sobre política econômica internacional, ou meio ambiente e desenvolvimento, ou sobre pobreza e desigualdade social.  Afinal, são estes os temas cruciais ligados aos países em desenvolvimento, certo?  Errado.  Puro amadorismo.  O curso com lista de espera e estudantes disputando a tapa uma vaga era o de Complex Emergencies (Emergências Complexas).  E lá se iam, europeus e americanos, ávidos em conhecer estratégias para se lidar com as guerras na África, os tsunamis na Ásia, os contaminados de Bhopal.  Entre os alunos havia um certo clima de “competição” pela experiência mais difícil, mais “Terceiro Mundo”: “Eu morei durante um ano em um acampamento de refugiados em Ruanda”.  “E eu recolhicorpos nas ruas de Phuket”.  “Mas eu carreguei nas costas mulheres sem pernas, das minas no Camboja”.

É admirável ver jovens curiosos em conhecer – e enfrentar – uma realidade tão diferente da deles.  Mas faz pensar.  Quando se buscam experiências de vida tão dramáticas como se fossem um esporte radical, alguma coisa está errada.  Para aqueles alunos, os problemas crônicos dos países em desenvolvimento não inspiravam tanto.  Eles não enxergavam em um gigante emergente como o Brasil, por exemplo, um país todo de emergências.

Nosso tsunami é anual, seja pela fome, seja pela violência.  Nossos refugiados abrigam- se em seus acampamentos, à espera de terra para plantar, para viver.  Nossos “bhopalenses” perdem seus rios e florestas pela contaminação da soja, da pecuária, da indústria.  São tragédias que se arrastam por anos, décadas.  Não trazem a adrenalina da urgência, mas a solidão de gerações de abandono.  E, nas regras da atração do Terceiro Mundo, isso valia pouco.  O Brasil não tinha vez.

A TERRA PROMETIDA Mas agora o país está “na moda”.  Parte do entusiasmo pode ser o bom e velho fascínio pelo novo, pelo diferente, pela sede de emoções.  Mas outra parte do encanto mais recente dos meus colegas estrangeiros, ansiosos em “experimentar” o País, pode dizer algo interessante para nós, brasileiros.

Talvez os jovens americanos e europeus, especialmente aqueles preocupados com um futuro melhor – mais justo e mais verde -, enxerguem no Brasilo que eles não mais encontram em sua terra natal: a chance de viver em um país em franca construção, com oportunidades para seguir um caminho novo, diferente do trilhado pela geração de seus pais e de seus países.  A possibilidade de “fazer melhor”.

Se a intenção é fazer melhor, o Brasil pode mesmo sair na frente.  Em edição recente, a revista The Economist elogiou os avanços nacionais na educação, na geração de emprego formal e na redução da desigualdade.  Para a revista, pouco afeita a exageros, o País apresenta desempenho social melhor que seus pares China e Índia.  Ao que se acrescenta uma democracia mais sólida e estável, em paz com seus vizinhos, além de uma sociedade civilorganizada, tanto na esfera social como na ambiental.

Claro que o Brasil está longe de corresponder ao retrato – por vezes reducionista – da revista inglesa.  Ainda temos uma sociedade indecentemente desigual, problemas ambientais graves e um crescimento baseado muito no desenvolvimentismo dos anos 70 e pouco na sustentabilidade exigida para o novo século.

Ainda há muito por fazer.  E, no caminho, as idéias ufanistas do passado não nos ajudam.  O Brasil não é “o país do futuro”.  Não somos a Terra Prometida.  Deus não é brasileiro.  Mas meus amigos gringos e a The Economist podem estar corretos em sinalizar, cada um a seu jeito, que o Brasil atual apresenta algumas oportunidades reais de se fazer diferente, de se fazer melhor.

Não somos “a Terra Prometida”, mas talvez sejamos um país que promete.  Não somos “o” país do futuro, mas tem muita gente apostando no futuro do Brasil.
(publicado originalmente na Revista Página 22 - www.pagina22.com.br

01 setembro, 2008

Um lugar na Terra

O mundo está ficando cada vez mais complicado, especialmente para quem anda preocupado com o mundo.  O aquecimento global, grande desafio da atualidade, escancara a responsabilidade de cada um em relação às mudanças climáticas.  Na tentativa de redimir nossa parcela de culpa e, quem sabe, assegurar um lugar no céu, o mercado nos dá uma mãozinha.

Esqueça a loira de curvas acentuadas. Na Inglaterra, o apelo dos novos anúncios de carros é estampar a quantidade de carbono que tal modelo emite em comparação com os concorrentes, ou detalhar as vantagens dos novos híbridos.  Para os carros grandes e potentes, campeões de emissões, é oferecido um “acessório” aos consumidores potencialmente – ou pretensamente – conscientes: as emissões dos primeiros x mil quilômetros são compensadas pela montadora.

Ou seja, alguém, em algum lugar, recebe dinheiro para não emitir carbono. E as indulgências que o mercado oferece não param por aí.  Vai passar o fim de semana em Barcelona?  Na British Airways,basta um clique, 5 libras a menos em sua conta, e pronto – você está absolvido!  É possível também compensar as emissões da sua nova prancha de surf, do seu tratamento dentário e até de um ente querido que morreu, com a “redenção” retroativa de uma vida inteira de pecados carbônicos.

A Carbon Neutral (www.carbonneutral.com) oferece uma lista de casamento inusitada: você escolhe a árvore que quer plantar na “floresta” dos noivos.  E que tal presentear um amigo com um “vale-dia de carbono neutro”?  Ele ganha o “certificado” de que, em tal dia, todas suas emissões terão sido compensadas. Graças a você.

O controverso filósofo esloveno Slavoj Zizek chama a sociedade atual de “descafeinada”, em alusão ao fato de que tiramos dos produtos que consumimos suas substâncias nocivas, para seguir consumindo – livres de pecado – o café sem cafeína, o creme de leite sem gordura, a cerveja sem álcool.

Para Zizek, a “crença descafeinada” não ofende ninguém e nem mesmo precisamos estar totalmente comprometidos com ela. “Não se trata mais da antiga noção de medida certa entre prazer e temperança, mas a coisa que é prejudicial já deve conter em si o remédio para os males que causa.
Não nos dizem mais ‘beba café, mas com moderação’, agora é ‘beba todo o café que quiser, pois o café já está descafeinado’”, escreve o filósofo.  Tal comportamento nos permitiria seguir vivendo a vida que desejamos, sem incorporar as conseqüências negativas desse modo de vida.

O problema dos excessos do mercado de carbono passa não apenas pelo desestímulo a alterações mais profundas no nosso padrão de vida, mas também pelas incertezas enormes que o próprio mercado enfrenta – e que não necessariamente transmite ao consumidor.

Uma crítica inteligente – e bem-humorada – ao esquema de compensações de carbono pode ser encontrada no site CheatNeutral (www.cheatneutral.com). A página inicial resume o “serviço” oferecido: “Quando trai seu parceiro, você aumenta o ciúme e a dor na atmosfera. Mas você pode compensar sua infidelidade, financiando alguém a ser fiel e não trair. Assim, você neutraliza a infelicidade que levaria ao mundo e fica com a consciência tranqüila!” Além de uma grande brincadeira, o site é uma alfinetada, pois instiga paralelos entre os dois esquemas.

Primeiro, a existência de um esquema para compensar a infidelidade não só torna aceitável ser infiel, como pode incentivar as pessoas a trair mais em vez der buscar outras soluções para seu relacionamento afetivo.  Esquemas de compensação de carbono, além de tornarem “aceitável” emitir carbono, podem estimular os indivíduos a emitir mais em vez de buscar outros modos de vida e repensar sua relação com os combustíveis fósseis.

Em segundo lugar, compensar a infidelidade não reduz, na prática, a ocorrência de traições no mundo.  Mesmo que eu compense minhas emissões e alguém deixe de emitir carbono do outro lado do planeta, a atmosfera ainda estará recebendo gases de efeito estufa – a conta final não é zero.

Por fim, da mesma forma que é praticamente impossível quantificar o estrago e a dor que alguém traído sofre, há sérias divergências sobre as formas de calcular as emissões ou o seqüestro de carbono – especialmente aquelas decorrentes da plantação de árvores.

As críticas fazem pensar, mas uma coisa é certa: é melhor compensar do que ignorar nossas emissões.  Apesar das incertezas e dos abusos que cercam o mercado, o ato é relevante. Ações individuais, ainda que simbólicas, podem ser o motor propulsor para mudanças maiores, mais radicais e efetivas.  ”Às vezes precisamos agir como se nossas ações fossem fazer diferença, mesmo quando não sabemos ao certo se vão mesmo fazer”, diz Michael Pollan, colunista do jornal britânico The Guardian.

Para um desafio da proporção do aquecimento global, alterações no nosso estilo de vida fazem, sim, diferença.  Mas não podem se limitar a ações ao alcance de um clique e alguns trocados.  Elas passam por uma mudança de paradigma da sociedade, que só acontecerá com ações individuais intermediadas por muita reflexão, discussão e ações coletivas.  A mera compra de indulgências não nos redimirá de nossos “pecados”.  Muito menos garantirá nosso lugar na Terra.
(publicado originalmente na Revista Página 22 - www.pagina22.com.br

01 agosto, 2008

As salsichas, as leis e a cadeia de fornecedores

“Quanto menos as pessoas souberem como são feitas as salsichas e as leis, melhor elas dormirão”.  No século XIX, à época da frase célebre de Bismarck, poucos se preocupavam em mostrar “ao povo” como as coisas eram feitas.  Hoje, há muita gente perdendo o sono por conta disso.

A última insônia foi da Primark, fenômeno do setor de vestuário no Reino Unido.  Nas lojas, são filas diárias de inglesas ensandecidas e turistas afogados em sacolas.  O segredo do sucesso?  Peças bonitas e estilosas a preços ridiculamente, impraticavelmente baratos.

Mas a BBC resolveu mostrar como as salsichas são feitas.  Um documentário da rede de TV britânica rastreou a cadeia de fornecedores da Primark para descobrir a matemática milagrosa para os preços de seus produtos.  Não demorou muito, encontrou “o milagre”: garotas de 11 anos, na Índia, em regime de semi-escravidão, bordando roupas que, dois meses depois, inundavam as prateleiras da loja em Oxford Street, no coração de Londres.  E durmam as inglesas com um barulho desses.

O revés reputacional da empresa foi assunto recorrente em uma grande conferência sobre sustentabilidade na cadeia de fornecedores, que reuniu recentemente em Londres mais de 100 grandes empresas.  Para elas, riscos de danos à imagem, somados à interrupção do fornecimento e à perda de fornecedores, são grandes motivadores para trabalhar junto com a cadeia para torná- la mais “ética” e “verde”.  Mas até onde vai a responsabilidade das empresas com seus fornecedores?

Vai até onde a empresa alcança na prática, os princípios e valores que assumiu, concluíram os especialistas reunidos na conferência.  No caso da Primark, não adiantou a companhia ter preceitos de comércio ético e auditorias exaustivas.  Claramente, eles sofrem a concorrência desleal do que parece ser a essência do modelo de negócio: a redução de custos, a busca frenética por produtos mais e mais baratos.  Não há conta que feche, não há princípio que se sustente com níveis de pressão tão grandes.
Trabalho infantil é um tema grave dos pontos de vista ético e regulatório.  Mas nem sempre quem trabalha com a cadeia de fornecedores encontra sinais tão claros do que é “certo” ou “errado”.  Um dos problemas de avaliar o impacto de um produto é metodológico: não há consenso sobre as melhores ferramentas.Ian Midgley, vice-presidente de compras da Unilever, diz que os esforços da empresa em medir as emissões de carbono de um único tipo de sabonete doméstico tiveram resultados confusos. “Ficou difícil avaliar a sustentabilidade do produto.”

Além disso, as empresas esbarram em escolhas difíceis, que envolvem juízos de valor.  Ulrike Ebert, diretora de responsabilidade corporativa da Coca-Cola, diz que não basta fazer a análise de ciclo de vida: “Podemos ter uma produção neutralizada em carbono, mas com enorme uso de água em uma região onde o saneamento é precário.  O que é mais importante: reduzir as emissões globais ou o uso de um recurso local escasso?”  E completa: “Podemos fazer análise de ciclo de vida em relação ao impacto da produção na água, mas temos que decidir onde vai ser a prioridade de ação: água e pobreza, água e ecossistemas, água versus carbono”.  São opções de caminhos distintos em direção à sustentabilidade.

Para Jim McDonnell, da PricewaterhouseCoopers, as decisões dependem do tipo de negócio que a empresa almeja: “Se você compra salmão para seu supermercado, tem duas opções: ou paga mais caro pelo salmão certificado escocês e ganha um nicho de mercado educando o consumidor, ou paga mais barato pelo produto russo, que não tem nenhum controle, mas traça junto com o fornecedor um plano de médio prazo com metas claras, para inserir sustentabilidade naquela produção”.

Para muitas companhias, educar tanto o fornecedor como o consumidor final é estratégico e responsabilidade das próprias empresas.  Mas o consumidor também precisa, ele mesmo, definir seus princípios.  Christopher Brown, diretor de compras sustentáveis da Asda – o braço britânico da Wal-Mart -, lembra que a produção de ovos orgânicos e “caipiras” emite mais carbono do que as granjas industriais.  A Asda optou por oferecer os diferentes produtos ao consumidor.  E é ele quem decide, na escolha do ovo, qual a importância, para ele, das mudanças climáticas, da crueldade com animais, do uso de agrotóxicos e também do buraco no seu bolso.

Assim como as empresas, o consumidor também tem que decidir para onde vai a “sua” sustentabilidade.  Toda vez que meu marido via nosso filho vestindo uma roupa da Primark – que comprei quando chegamos em Londres -, ele fingia ler na etiqueta: “Primark: roupas de crianças… feitas por crianças”, em alusão à desconfiança de que a produção da empresa utilizasse trabalho infantil.  Eu, mais crédula, achava graça.  Agora, não acho mais.
(publicado originalmente na Revista Página 22 - www.pagina22.com.br)