19 agosto, 2011

[sonho, mexico, 1998]

Eu estou te esperando nesse sol mesmo, na praça do coreto, o ar seco, meio cinza-marrom, meio sem cor, sem ar, sem trago. Ou talvez um trago curto e grosso. Trago gosmento. Trago denso. Como quando você nos traga, ou quando engole sem tragar - às vezes acontece. Hoje sonhei com essa máquina fazendo girar minha cabeça com uma manivela, consertando alguma coisa. Fazendo o verme dentro da garrafa respirar e pular, pulo rápido atento que nos faz parar de transar para ver, assustados com o sinal da lesma morta pelo aguardente. Assim que morreram todos: nós, o verme, a velha. Principalmente a velha, tísica, amolestada e embriagada, berrando nos nossos olhos, molhando seu vidro de óculos. Estávamos na praça - lembra? - aborrecidos com o pouco que nos restava. Restava já muito pouco, mais a maldição da velha, macumba índia de pele queimada, os cabelos brancos e pretos fazendo de névoa e cortina para o sol. Eu fico te esperando à tarde, às vezes também de manhã, no nascer do barulho, às vezes à noite. Algumas vezes de madrugada, quando não venta. Se venta, procuro abrigo na velha, o abraço enrugado e trêmulo da velha, o ninar sarcástico dela em mim. Ontem sonhei que cortava seus cabelos, e ela gritava uma canção tarahumara horrível, cheia de tosses e catarros. Morri nesse sonho. Terrível morrer nos sonhos. Sonhos são para viver, a gente vivia dizendo. Eu espero por você e pela velha e pelo Omar, que dos três foi o último a me ver, olhar tão desconfiado que eu chorei escondido. Ele com o cabelo despenteado, a franja caindo na frente, o olhar dele em mim. Queria que ele não fosse tão pequeno, tão frágil, como você pôde trazê-lo assim pra mim? O dia do futebol com os turistas todos é que me dei conta dele. Da pequenice dele chorando pelo joelho ralado. Não fizemos nada, não é mesmo? Ficamos lá olhando, assustados, nosso Omar, os gringos levantando Omar do chão, Omar com cara de choro e a gente a estranhar aquela cara criança, acho que foi ali o começo do olhar desconfiado, o começo de tudo. Eu estava insatisfatoriamente feliz com minha saia vermelha e branca, as flores grandes e exageradas amarelas compondo com a bainha de renda grossa, meus pés nus, seus dedos nos meus pés, nosso sorriso sentados na pedra, campo seco de pedregulhos e de Omar criança. Como doeu. Ele tem nove anos. Na última vez que o vi. Nove anos. Foi a última vez que vi Omar a última vez que te vi, ou foi muito antes, fugimos muito antes. Antes até do trem, foi aquele dia que eu não quis o gelo colorido. Que pena, essa despedida assim tão doce. Te espero também para ela ser mais amarga, mais agridoce. Para ser do sabor da velha. Da pele, do cabelo, do suor da velha. Ela não vai me matar, prometeu não me matar até você voltar.