10 outubro, 2010

Um jacaré e duas preguiças pra viagem, por favor

Tempos atrás visitei a Amazônia em um esquema turístico, ficando em um desses lodges à beira do rio. Acostumada com viagens de trabalho ou de mochileira, eu me adaptei à nova vida com criança pequena e lá fui com filho, sobrinhos e primos para um pacote “na selva”.  Desconfortável com o conforto excessivo, achei que a experiência podia não ser a mesma com tudo tão estruturado. Bobagem.  A viagem foi sensacional.  Só não sei se o meu entusiasmo foi compartilhado pelos turistas que encontrei por lá.

Na chegada, o gerente me ganhou.  Simpático e paciente, mostrou um mapa das áreas protegidas e desmatadas na região, falando rapidamente sobre a destruição da floresta.  Mas, enquanto eu ficava pateticamente tentando forçar a criançada a prestar atenção no arco do desmatamento e no avanço da soja, elas corriam das mães que insistiam em passar o repelente pela quinta vez naquela manhã.

Logo na primeira noite, saímos para a tão esperada “focagem de jacaré”, uma unanimidade entre as crianças.  Enquanto pulávamos para dentro do barco, o guia, um morador local simpaticíssimo, alertava que não é sempre que a gente vê o bicho, mas que o objetivo era também encontrar outros animais.  Tudo ia bem, as crianças animadas.  Mas comecei a sentir que alguma coisa estava errada quando um pai respondeu: “Ué, mas não existe aqui algum lugar onde os jacarés se concentram, que não tem erro, a gente vai e encontra o bicho?” Diante da resposta negativa do guia, alguns pais se entreolharam, desconfiados.

As duas preguiças que observamos no caminho não deram muito o que falar entre os adultos: uma muito no alto e muito longe, a outra mais próxima, mas com a cabeça escondida.  A cobra, equilibrada em um galho de árvore, era esquálida demais e, pra piorar, não se mexia.  Quando o clima já era de querer o dinheiro de volta, o jacaré apareceu triunfante, olhões diante das lanternas, corpo inteiro fora d’água, fuga rápida, desempenho perfeito.  Pais contentes e motim abortado.  (As crianças, obviamente, já estavam contentes há tempos, com o barco, com as lanternas, com a noite, com o rio, com as preguiças e com a cobra.)

No dia seguinte, na visita à comunidade de artesãos, os turistas não tiveram tempo de olhar para os meninos esculpindo as madeiras, afoitos que estavam para chegar primeiro à lojinha.  Fizeram sua parte: saíram com sacolas e mais sacolas – e mais sacolas.  Perderam a gargalhada gostosa do rapaz terminando um peixe-boi, o jardim fresco com a mangueira carregada, a praça bonita.

O passeio de canoa pelos igapós também frustrou algumas famílias: “Tudo muito igual”.  De bedelho na conversa da mesa ao lado durante o jantar, ouvi um jovem marido comentar com a mulher que tinha gostado da visita às grutas, mas estava contrariado.  “Não entendi por que a gente foi até a última: não tinha nada diferente das duas primeiras, não agregou nada!”

Sair pela madrugada para ver o sol nascer também não era assim tão extraordinário, porque raramente se via o sol – ou muita bruma, ou muito nublado, vai saber.  Parece que os pássaros também não agregavam muito – eram poucos e não cantavam tanto.  De volta do passeio à comunidade cabocla, um menino de 5 anos não parecia contente.  Ansioso com a promessa repetida dos pais de que ele conheceria uma aldeia indígena na viagem, ele suspirava, chateado.  “Foi legal, mas não tinha índio, só tinha gente!”

Eu mesma entrei na onda.  Hospedada na beira de um dos mais belos rios do mundo, fui perguntar na recepção se não tinha por ali um igarapé escondido para nadar, alguma água boa, fresquinha, sem ninguém, algum lugar diferente, “que não tem erro”.  Não tinha.  O gerente foi educado: “Lamento, mas banho só no rio, mesmo”.

Pois foi só naquele rio mesmo que nadei todas as outras manhãs, na companhia de alguns barcos passando e passarinhos voando baixo, desfrutando do silêncio e da solidão, da água fresca na pele, da luz do sol no olho e a sombra da vegetação amazônica na paisagem.  E quis morrer ao pensar que eu mesma tinha embarcado no turismo do inédito, do exclusivo, do turismo que “agrega”, do turismo de resultado.

A graça da floresta não está no que ela tem de único, mas no que tem de trivial.  Você não precisa tropeçar a toda hora em bichos, paisagens e gentes, como se fosse ticando uma lista de compras.  O país dos índios é o país dos caboclos, a floresta tropical com a maior diversidade do planeta é a mesma floresta das noites silenciosas, com uma solitária preguiça no alto da árvore.  Preguiça de cabeça escondida, sim, mostrando, ao não se mostrar, a beleza, a beleza da natureza brasileira.

Não tem erro: o olhar do turista para a nossa biodiversidade precisa ser outro.
(publicado originalmente na Revista Página 22 - www.pagina22.com.br)